O Meu Carro e Eu - Pré-Clássicos com Alma



Há quem diga que o meu carro é um pré-clássico. Ainda não é antigo o suficiente para ser admirado nas concentrações de domingo, mas já passou a idade em que se lhe exige desempenho. Está num limbo temporal — como eu.

Vamos envelhecendo os dois, a um ritmo vagamente sincronizado. Há dias em que o motor dele custa a pegar, e eu também demoro a levantar-me. Ele aquece devagar, resmunga em subidas, precisa de carinho nos travões. Eu também.

Levamo-nos um ao outro à revisão: ele à oficina, eu ao médico. Escutamos diagnósticos parecidos — desgaste natural, peças que já não respondem como antes, pequenas falhas que ainda não justificam intervenção mas que convém vigiar. Somos mantidos em circulação por essa arte silenciosa da persistência.

Já pensei trocá-lo. É verdade. A promessa de um carro novo, com garantias, conforto, tecnologia. Mas depois lembro-me que nenhum outro me conhece como este. Nenhum outro saberia os gestos instintivos que me tornam condutor — aquele virar de volante ligeiro antes da curva, o silêncio cúmplice antes do arranque. Há fidelidades que se constroem sem palavras.

Ele passa sempre na inspecção. Eu, nem sempre. Ele recebe um carimbo com validade de um ano. Eu saio com exames para repetir e uma consulta marcada três meses depois. E ainda assim, somos ambos considerados aptos. Por enquanto.

Os seguros sobem, os valores de mercado descem. O mundo mede tudo em termos de utilidade e retorno. Mas há uma zona onde isso não chega — uma zona onde o tempo vivido pesa mais do que o tempo que falta. A memória das viagens, dos silêncios partilhados, dos dias em que tudo parecia certo. É aí que nos encontramos.

Chamam-nos pré-clássicos, como se estivéssemos numa fase de transição. Mas talvez sejamos já o que importa ser: companheiros de estrada que resistem. Não por teimosia, mas por afeto. Não por medo do novo, mas por respeito pelo vivido.

Porque no fim, talvez a vida seja mesmo isso: uma longa viagem num carro imperfeito, com avarias que se vão resolvendo, e uma paisagem que nos vai ensinando a ver beleza onde antes só víamos pressa.


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