Guardião de Oeiras
(uma fábula de cinzas, bigodes e justiça)

Dizem que, ao nascer do sol, há um instante em que o tempo hesita.
É nesse momento — breve como o pestanejar de uma estátua — que algo se ergue dos jardins do Palácio do Marquês de Pombal, em Oeiras.

Não tem nome, nem precisa.
É feito de cinzas, memória e pacto.
Tem o olhar sábio de um homem cansado do mundo…
E o andar silencioso de um gato que já viu tudo — e não perdoa o que é injusto.

O seu nascimento foi escrito num testamento pouco convencional:

“Quando eu morrer, quero ser cremado.
E que as minhas cinzas se misturem com as da minha gata.
E que as espalhem juntas, ao nascer do dia, nos jardins onde caminhei a pensar em tudo o que era errado, e em tudo o que poderia ser melhor.”

Ninguém acreditou.
Mas alguém cumpriu.

Do turbilhão cinzento que se formou no meio do nevoeiro e das buganvílias, surgiu ele — o Guardião.
Metade homem, metade gata.
Metade pó, metade espírito.
Inteiramente lúcido.

Desde então, vagueia entre as sebes geométricas e as fontes silenciosas.
Ninguém o vê diretamente.
Mas quem comete uma injustiça sente um frio estranho na nuca…
Um roçar de bigodes invisíveis…
Um olhar verde, antigo, que desarma desculpas.

Dizem que protege os que não têm voz.
Os que são esquecidos pela burocracia, atropelados pelo sistema, maltratados por rotina ou ignorância.
Defende velhos solitários, gatos abandonados, crianças invisíveis e verdades caladas.

Aparece, às vezes, ao lado de um banco de jardim.
Outras vezes, entre um raio de sol e uma sombra justa.

Há quem diga que é só uma lenda.
Mas os jardineiros do palácio juram:

Todos os dias, ao amanhecer, há pegadas ligeiras na terra…
e cinzas no ar, que cheiram a amor antigo e justiça adiada.

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