O Cigano



Desenhava sempre.

Era um gesto tão natural como respirar — e talvez mais necessário.
Desenhava nos separadores dos cadernos da escola, nas costas das carteiras de fósforos , nas folhas verdes de mata-borrão que cobriam as secretárias no escritório, nas toalhas de papel dos cafés, nos guardanapos amassados pelo tempo e pela pressa.

Com um traço ou dois, contava pequenas histórias.
Eram cenas silenciosas — às vezes ternas, outras inquietas — onde deixava escorregar sentimentos que não sabiam pedir licença.

Uma tarde, estava a tomar café no Bristol, ali mesmo ao lado da Sede do Benfica, na Rua Jardim do Regedor.

Desenhava num papel qualquer — não sei o quê, talvez um rosto, talvez um cavalo, talvez só o que me apetecia escapar do dia.

Um homem de barbas, com ar de cigano, aproximou-se.

— Queres trabalhar para mim? — perguntou.
— Não, obrigado. Trabalho ali nos escritórios da Guérin — respondi, quase sem levantar os olhos.

Passado um momento, alguém veio ter comigo, meio espantado:
— Mas tu sabes quem era aquele gajo?

— Sei lá… um cigano qualquer!

— Podia parecer, mas era um dos Covôes, ali do Coliseu. E tu acabaste de recusar, com toda a naturalidade, uma oportunidade de fazeres cartazes para ele. Estava-te a observar como quem já tinha decidido.

Também os meus colegas insistiam:
— Porque é que não vais para a António Arroio?

Falei disso em casa, uma vez.
A resposta foi simples, firme, sem hesitação:

— Não. O curso comercial e a Guérin são o caminho mais seguro para ti.

As pessoas olhavam-me a desenhar e achavam que eu desenhava bem — talvez mais do que eu próprio achava.
Eu achava que só tinha algum jeito.
E olhava o homem de barbas e julgava-o pelo aspeto — sem saber quem era, nem o que via em mim.

Na verdade, ninguém conhece o verdadeiro valor do outro enquanto só olha de fora.
E muitas vezes, também não conhece o seu próprio.

E assim, naquele tempo em que o mundo parecia prestes a mudar — pelo menos no resto do mundo — eu continuei a desenhar, nos cantos que sobravam.
Nas margens da rotina.
Nas pausas do destino.


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