A Justiça é Cega... Mas Tem Audição Seletiva?

Há uma dissonância gritante na forma como a justiça é aplicada no mundo. No nosso dia-a-dia, tentamos cumprir as regras – as do trânsito, as do trabalho, as da boa vizinhança. Crescemos com a ideia de que a lei é para todos, que a justiça é imparcial e que somos todos iguais perante ela. Uma premissa bela, um pilar da civilização, não é? No entanto, basta ligar a televisão ou abrir um jornal para que este castelo de cartas se desmorone.

Vemos líderes de nações que bombardeiam escolas e hospitais, ocupam territórios e matam civis, e depois passeiam sorridentes pelos corredores da ONU, a discursar sobre a paz e a democracia. Estes "grandes" não são julgados, não são presos e, muitas vezes, ostentam um direito de veto que mais parece uma licença para a impunidade. Chamam-lhe "soberania" ou "geoestratégia", termos grandiosos que, neste contexto, soam a desculpas esfarrapadas, um manto diplomático que encobre a mais abjeta hipocrisia.

É aqui que a pergunta se impõe e a frustração ganha voz: "Se os grandes não obedecem… eu também não quero". Porque é que um cidadão comum, ao cometer um crime, é rapidamente enquadrado pela justiça, julgado e punido, enquanto as mesmas ações, quando praticadas em larga escala por Estados, são maquilhadas com terminologia política e varridas para debaixo do tapete diplomático? Fosse um cidadão a fazer o que esses protagonistas de gravata fazem, seria rotulado de terrorista e enfrentaria as consequências mais severas.


O Mesmo Ato, Nomes Diferentes: A Dicótomia da Violência

É intrigante como um ato de violência que resulta na morte de civis ou na destruição de infraestruturas pode ser qualificado de formas tão distintas. Se um indivíduo ataca um edifício público para incutir terror, isso é universalmente condenado como terrorismo, com responsabilidade individual inquestionável. Contudo, se esse mesmo ato – ou algo de escala muito superior, como um bombardeamento a um bairro civil – é praticado por um exército regular, sob as ordens de um governo, a narrativa muda. Já não é terrorismo; é "ação militar legítima", "defesa nacional" ou "operação de manutenção da paz". Os responsáveis usam fardas ou gravatas, não máscaras, e a sua responsabilidade parece diluir-se na "cadeia de comando" ou na "razão de Estado".

A questão da obediência é fulcral. Embora o direito internacional procure mitigar o princípio da obediência devida com o conceito de que ordens manifestamente ilegais não devem ser cumpridas, esta aplicação é, muitas vezes, seletiva. Raramente vemos chefes de Estado ou generais de potências dominantes serem julgados por estas instâncias, a menos que percam o poder ou se tornem politicamente vulneráveis. O "direito de veto" ou a simples recusa em reconhecer a jurisdição de certos tribunais são escudos que protegem os "grandes".


O Elo Perdido da Justiça Global

Esta dicotomia – o mesmo ato ser terrorismo para uns e política para outros – não é apenas uma questão de terminologia. É um desafio profundo à legitimidade do direito internacional e à ética das relações globais. Se o que define a moralidade de um ato é a autoridade de quem o comete, e não o sofrimento que provoca ou a sua conformidade com princípios universais de justiça, então vivemos num mundo onde a lei é uma ferramenta de poder, e não um garante de equidade.

A verdade é que a justiça, para ser realmente justa, não pode ter privilégios. Não pode curvar-se perante o poderio militar ou económico. A responsabilidade individual deve ser exigida a cada líder, a cada decisor, pelas ações que ordenam e pelos seus impactos. E a responsabilidade coletiva das nações, ou seja, da comunidade internacional, é garantir que essas leis sejam aplicadas universalmente, sem exceções.

Caso contrário, o que resta é um palco onde os mais fortes ditam as regras, a impunidade se instala e a semente da revolta e do niilismo floresce. A crença na justiça, essa bússola moral que nos guia, corrói-se. Se a lei não é igual para todos, para que serve, afinal? Vivemos dentro de um sistema onde a legalidade é obrigatória para os pequenos, e discutível para os grandes. E a justiça? Essa é cega, sim. Mas parece ter audição seletiva – ouve melhor quem fala mais alto… ou mais caro.

Por isso, quando alguém me disser que vivemos num Estado de Direito, terei de perguntar: de quem? E até onde?




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