Soumoud: quando a ajuda vem do povo e não dos palácios

Há palavras que carregam mais do que letras — carregam histórias, sofrimentos, esperanças. Soumoud (صمود), em árabe, é uma dessas palavras. Traduz-se por "firmeza", "resistência", "perseverança". Mas na prática, Soumoud é muito mais: é um grito calado que se recusa a desaparecer. E agora é também o nome de um comboio de ajuda humanitária que atravessa fronteiras, desertos e bloqueios com um só objetivo: chegar a Gaza.

O Comboio Soumoud não foi organizado por governos, nem por comissões da ONU, nem por diplomatas de fato escuro e olhar neutro. Não. Veio das ruas. Das vozes cansadas de esperar. Dos cidadãos que trocam a passividade por ação, e que decidiram que já era tarde demais para ficarem sentados à sombra do silêncio internacional.

Começou no Magrebe — com gente da Tunísia, Marrocos, Argélia, Líbia — e cresceu como crescem os ventos no deserto: sem aviso, mas imparáveis. Atravessa agora o Egito, com destino a Rafah, a passagem mais simbólica e mais trancada do mundo. O plano é ousado: levar centenas de veículos e milhares de pessoas, reunir-se a outros comboios e formar uma Marcha Global por Gaza, acampando na fronteira até que o muro de indiferença ceda.

Não é só ajuda que carregam. Carregam também memória, dor e compromisso. Carregam o peso dos que ficaram para trás e a esperança dos que ainda respiram entre escombros.

Importa destacar o óbvio: isto não é só solidariedade. É também desobediência civil. Um gesto de coragem que desafia bloqueios, checkpoints e silêncios cúmplices. Um movimento que diz: “Se os governos não conseguem ou não querem, então vamos nós.”

Estranhamente — ou talvez não — a maioria dos media tradicionais ignora este gesto. Preferem os números abstractos, os apelos formais, as conferências de imprensa sem alma. O Soumoud é desconfortável, porque não pede licença, não se curva à diplomacia, não entra pela porta traseira das boas intenções. Vai pela estrada da frente. Direta. Real. Perigosa.

E talvez seja isso que mais incomoda: a ideia de que o povo pode mover o mundo. Sem tanques, sem lobbies, sem embaixadas. Só com vontades firmes e corações expostos.

Como "cronista" deste tempo estranho, onde a desumanização parece ganhar terreno todos os dias, não posso senão admirar este comboio. Não sei se vão conseguir passar. Não sei se vão ser ouvidos. Mas sei que já são um símbolo. Um lembrete de que a dignidade humana não precisa de passaporte nem de autorização oficial para atravessar fronteiras.

O Soumoud avança. E connosco vai também uma pergunta: seremos espectadores ou companheiros de caminho?


Data Alvo: Os organizadores esperam que o comboio se junte à Marcha Global para Gaza na fronteira de Rafah por volta do dia 15 de junho de 2025, com o objetivo de negociar a abertura da fronteira com as autoridades egípcias e Israel, para quebrar o cerco.

Comentários

  1. Li e reli, Pedro. Que magnífico texto !!!!!

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  2. Zita, infelizmente , parece que o Egito vai impedir a passagem do comboio

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    1. Pedro, que vertigem de loucura vai por este mundo. Oxalá os nossos mais jovens consigam lidar com o futuro.

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