Trump, Israel, Irão e o Cessar-fogo das 24 Horas: Um Acordo Realmente Surreal

Publicado por Pedro Baptista

Nas últimas horas, o mundo assistiu ao anúncio inesperado — e inusitado — de um suposto cessar-fogo entre Israel e o Irão, mediado pelo Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Reeleito em 2024, Trump apresentou-se como artífice de um acordo de paz faseado que parece saído de um argumento de ficção política.

Segundo o plano tornado público, o cessar-fogo divide-se em duas fases de 12 horas: o Irão interrompe os ataques durante as primeiras 12 horas e, de seguida, Israel faz o mesmo. Ao fim de 24 horas, a guerra estaria “oficialmente” terminada. Um cronómetro da paz — sem relato de observadores internacionais, sem tratado assinado, sem verificação independente. Apenas a palavra de Trump, amplificada por redes sociais e conferências de imprensa.

A diplomacia do absurdo

O que surpreende, mais do que o conteúdo, é o cenário: um presidente norte-americano a ditar os termos de uma trégua entre dois Estados inimigos — sem a presença da ONU, da União Europeia, ou de qualquer entidade multilateral. Não houve conferência internacional, nem se conhecem pormenores técnicos, nem sequer confirmação oficial de Telavive ou Teerão. Houve, sim, um palco mediático, e a criação de um “facto político” pela força do anúncio.

Neste universo onde a diplomacia se faz como espetáculo e a paz se encena por declarações públicas, resta perguntar: onde está a legitimidade, a verificação e o compromisso duradouro?

Real ou encenação?

Ainda que o cessar-fogo venha a concretizar-se — e oxalá aconteça — será ele fruto de negociações sérias ou de pressões improvisadas? Será uma pausa táctica ou uma paz genuína? E até que ponto a figura de Trump está a ser usada como peão — ou rei — num xadrez global de interesses que não conhecemos totalmente?

O certo é que este episódio, se não fosse trágico, seria cómico. Estamos perante uma “paz relâmpago” anunciada à la carte, com um cronómetro de 24 horas e sem qualquer documento visível. Um episódio que mostra até que ponto o palco internacional se tornou permeável ao espetáculo.


[Atualização] Retaliação  Encenada? A Guerra Que Se Representa a Si Mesma

Poucas horas após o anúncio do cessar-fogo faseado mediado por Trump, surge um novo episódio digno de um teatro geopolítico: o Irão afirma ter lançado um ataque sobre a base aérea norte-americana de Al Udeid, no Catar — ataque que, segundo todas as partes envolvidas, não causou qualquer dano.

A base, essencial para as operações dos EUA na região, teria sido alvo de um número de mísseis equivalente ao dos ataques norte-americanos sobre instalações nucleares iranianas no fim de semana. Mas o governo do Catar garante que nenhum míssil atingiu o alvo e que as defesas aéreas repeliram a ofensiva. Mais: segundo fontes iranianas citadas pelo New York Times, o ataque foi previamente comunicado a Doha, de modo a evitar vítimas e reduzir riscos de escalada.

A retaliação ensaiada

O padrão é conhecido. Já em 2020, após o assassinato de Qassem Suleimani, o Irão retaliou com mísseis sobre uma base no Iraque — mas também então avisou antecipadamente os EUA. Agora, a história repete-se: é preciso reagir, mas com contenção; demonstrar força, mas sem provocar guerra aberta.

O resultado é um ataque sem vítimas, anunciado com antecedência, e interpretado como simbólico até pelo Departamento de Estado norte-americano. A teatralidade é tanta que se aproxima do absurdo: os mísseis voam, mas avisam antes; a retaliação acontece, mas não atinge; a guerra continua, mas ninguém quer lutar.

Catar: palco ou bastidor?

O Catar, oficialmente vítima, parece ter sido mais cúmplice tácito do que alvo. O seu posicionamento no Médio Oriente permite-lhe equilibrar relações com os EUA, o Irão e até com grupos não estatais, mantendo-se relevante, mas raramente envolvido.

Ser avisado de um ataque e não o impedir publicamente é mais do que diplomacia: é realpolitik em estado puro.

Bastidores diplomáticos em ação

Enquanto tudo isto se desenrola, o enviado de Trump para o Médio Oriente, Steve Witkoff, mantém contactos com autoridades iranianas — uma revelação discreta, mas crucial. Mostra que, apesar das aparências, existe diálogo. O cessar-fogo não foi apenas obra do acaso ou da vontade de um homem — foi o resultado de pressões, bastidores e acordos tácitos.


A Guerra como Representação (e o silêncio de Gaza)

O que testemunhamos não é apenas conflito, mas também encenação. Os atores ensaiam gestos de força, mas calculam cada movimento para não cair no abismo. A guerra, como já o foi a paz anunciada, tornou-se espetáculo. E nós, como observadores, temos o dever de olhar para além do palco e perceber o que se passa entre bastidores.

Mas há uma ausência que grita no silêncio: Gaza.
A guerra que ali continua — ou foi apenas suspensa? — desapareceu das manchetes. Entre Israel e o Irão, entre mísseis anunciados e bonés vermelhos, os civis palestinianos voltaram a ser figurantes silenciosos da história. A paz mediática não chegou a sul. E isso, por si só, já diz tudo.

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